Tráfico negreiro no Brasil
(Texto de
Alexandre Foca).
O uso de trabalho escravo no Brasil começou assim que os
portugueses se interessaram economicamente pela região, o que não aconteceu
logo de ínicio. A colónia foi avistada em 1500, mas só a partir de 1531 se
decidiu cultivar a cana de açúcar e posteriormente o algodão, café, cacau e o
tabaco.
Após a tentativa fracassada de usar mão de obra índigena,
fruto da dificuldade de controle sobre as populações índias (que ofereciam
grande resistência), da dizimação de grande parte delas pelas epidemias
trazidas pelos europeus e pelo interesse da Igreja Católica em utilizá-las como
imagem dos novos convertidos ao Cristianismo, os índigenas foram uma minoria
nas fileiras de pessoas que integraram o trabalho escravo. Inclusivé em 1570
surgiu a primeira lei contra a escravização indígena.
Para contornar a crescente procura por força de trabalho,
Portugal resolveu investir no tráfico de escravos vindos diretamente da Costa
Africana. Isto tornou-se viável através do domínio que Portugal já possuía
nalgumas regiões de África e nas possibilidades de lucro que a venda desses
escravos traria aos cofres da Coroa. A Igreja Católica não se mostrou tão
benevolente para com os escravos africanos, que associava à prática do
Islamismo.
Em 1548 (século XVI) ínicia-se a primeira leva de escravos
africanos para o
Brasil, Chamado Ciclo da Guiné, mas nessa altura da história ‘’Guiné’’ era um
nome que se dava a uma vasta região que compreendia territórios como o Senegal,
a Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Mali, Burkina Faso, entre
outros.
·
Estima-se
que a maior parte destes escravos pertenciam a várias etnias designadas de Malê, que era o termo usado no Brasil
para distinguir os negros muçulmanos que sabiam ler e escrever em língua árabe,
·
Esta
palavra pode ter origem na palavra málami,
que significa "professor" ou "senhor" do povo Haussa, ou na
palavra imale, que significa
"muçulmano" na língua Iorubá,
·
Os
Malês compreendiam, entre outros, os
Peul, Fula, Mandiga, Haussa, Tapa e Gurunsi.
Entre 50.000 a 100.000 escravos foram levados para o brasil
neste século.
Os destinos que
tomaram foram o Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís (Maranhão). Uma das
influências que os Malês deixaram e
que podemos encontrar na Capoeira de hoje em dia são os cânticos e corridos do
género:
Oh lain lá ê lá
Oh lê lê...
Lá laiá lá iá
Oh lê lê...
A partir de 1580 e até o final do século XVII começa o
segundo ciclo de escravos vindos da zona correspondente ao espaço hoje pertencente a Angola,
Congo, Camarões, Gabão, República Democrática do Congo, Zâmbia, Zimbábwe,
Namíbia, Moçambique, África do Sul entre outros, apelidado de Ciclo de Angola e Congo.
Estes escravos
eram do grupo etnolinguístico Bantu.
A palavra bantu
significa "povo" em diversas línguas destas etnias e foi utilizada
pelos europeus colonizadores para identificar os povos do sul da África que
falavam línguas bantas.
Estima-se que foram levados entre 560.000 e 600.000 pessoas
neste período.
Entre as zonas de
destino encontram-se Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e
o Recôncavo Baiano.
·
Podemos
considerar o Berimbau como a sua grande herança para a Capoeira moderna.
·
De
facto existem arcos musicais semelhantes ao Berimbau como o Mungongo (dos Babongo e Mitsogo do Gabão), o Hungu (dos Ambundu e Mbundu da
região de Luanda), o M’bulumbumba (dos Khoisan do Sul de África), o Ugubhu (dos
Zulus da África do Sul) e o Uhadi (dos Amaxhosa da África do Sul), entre
outros.
·
A
característica comum destes instrumentos é a de que todos pertencem a etnias do
sul de África, e quase todas Bantu
(exceto os Khoisan).
·
Estes
instrumentos são usados (em África) em rituais ligados ao divino e mantiveram
esta característica de misteriosidade no Brasil.
Os povos Bantu tinham crenças rligiosas
tradicionais africanas, geralmente de cariz animista e neste ambiente de
miscegisnação vieram misturar as suas crenças com as dos escravos de origem Iorubá que foram trazidos nos períodos
seguintes.
Crê-se que os Bantu foram os primeiros a cultuar
divindades africanas em solo brasileiro, a organizar terreiros e locais
próprios de culto, bem como os rituais envolvendo dança e música.
Após sincretismo
com a religião Iorubá, chegou aos
nossos dias o Candomblé Bantu, da nação Angola, que se desenvolve entre
escravos que falavam Kimbundu, Umbundu e kikongo.
No século XVIII deu-se a terceira leva de escravos, que devido a uma grande
epidemia de varíola registada em Angola, provocou uma nova mudança na rota do
tráfico para norte.
Vieram da chamada
Costa da Mina, onde existia a feitoria de São Jorge da Mina, local corresponde
nos dias de hoje ao território ocupado pela Nigéria, Benim, Togo, Gana e Costa
do Marfim.
Vieram principalmente
pessoas das etnias:
·
Jêjes (Fons, Ewês, Fanti, Ashanti, Mina) do
antigo Reino de Daomé,
·
Iorubá (também conhecidas de Nagô) do Império
de Oió, entre outros,
·
Malês (à semelhança do primeiro Ciclo).
De 1.300.000 a 1.700.000 pessoas foram levadas neste ciclo e
quase todas para a Bahia.
É de referir que o
Império de Oió e o Reino de Daomé eram vizinhos rivais e lutavam por supremacia
e conquista do território do outro e que os escravos que cada um aprisionava da
nação vizinha eram depois vendidos aos europeus e levados para o continente
americano, muitas vezes em troca de armamento.
O próprio termo Jejês (djedjes) é cunho das etnias Iorubá e significa ‘’estranhos’’ ou
‘’estrangeiros’’, marcando uma divisão entre os povos destas nações inimigas e
entretanto presas no mesmo cativeiro.
O termo Nagô era a designação dada pelos
franceses aos negros escravos, vendidos neste período, que falavam o Iorubá.
Jeje-Nagô é o termo utilizado para designar a fusão
das culturas e principalmente nas religiões afro-brasileiras onde são cultuados
tanto Voduns (de origem Jejê) como
Orixás (de origem Iorubá).
O último período de transporte de escravos para o Brasil
começou em 1770 e terminou em 1851 (metade do século XIX). Apelidado de Ciclo
da Baía de Benim, ou Costa dos Escravos, situava-se a norte do Golfo da Guiné, e
abrange a costa que vai do Cabo de São Paulo no Gana, passando pelo Togo e o
Benim até à foz do rio Níger na Nigéria.
As etnias trazidas
neste período são as mesmas do período anterior, com uma marcada presença Nagô (Iorubá), e a sua concentração
dá-se também na Bahia.
Cerca de 1.700.000 escravos foram trazidos nesta última leva, muitos já em situação
clandestina, após a Inglaterra e os Estados Unidos terem banido a escravidão.
Os Iorubá, habitantes do antigo
Império de Oió, do Reino de Ketu, entre outros, trouxeram um manancial rico de
lendas, mitos e divindidades que cultuavam, bem como uma tradição oral tão
forte que chegou, influenciou e se misturou, através do sincretismo, com a
religião Cristã, definindo para sempre a face religiosa do Brasil. A sua grande
contribuição para a Capoeira foi a componente religiosa, do Candomblé e dos
Orixás.
Sendo que a Capoeira contemporânea descende diretamente da
Capoeira encontrada em Salvador (Bahia) nos finais do século XIX e que todas as
outras manifestações designadas de Capoeira no resto do País se extinguiram,
podemos então concluir que é a presença Nagô
aquela que mais se faz sentir nas manifestações culturais Afro-Brasileiras das
quais a Capoeira faz parte.
Por terem sido os últimos a desembarcar, a sua influência
encontra-se mais ‘’fresca’’ na memória coletiva.
No entanto a nível de instrumentos, ritmo e coreografias, é
inegável o contributo das etnias Bantu,
que detêm mais presença nestes campos. Estudiosos afirmam que os primeiros
terreiros e espaços dedicados ao culto de divindades africanas foram feitos e
organizados pelos Bantu, mais tarde
pelos Jêjes, e só posteriormente
pelos Nagô (Iorubá) que vieram
aproveitar o caminho já aberto pelas outras etnias.
Os Malês foram de certa forma postos de
parte tanto pelos senhores esclavagistas como pelas restantes etnias
escravizadas. De religião muçulmana, muitos destes escravos não adotavam uma
postura submissa, eram alfabetizados, bilingues, detinham mais educação que os
seus senhores e evidenciavam-se como um grupo à parte.
Não havendo
flexibilidade para a sincretização da sua religião, devido talvez à rivalidade
Islâmico-Cristã milenar que gerou uma antagonização difícil de conciliar nos
cultos e rituais, bem como um sentimento de superioridade da fé muçulmana
monoteísta frente às religiões tradicionais africanas animistas, os Malês usaram um recurso de resistência
espiritual (dissimulação religiosa), denominado pelos teólogos islâmicos de
al'tagiyya ("guardar-se").
Prestavam culto em
segredo e acabaram por literalmente ‘’guardar-se’’ das influências externas o
que resultou numa presença muito pouco marcante e talvez por este motivo seja
mais difícil ver influência Malê na
Capoeira e outras manifestações culturais do Brasil.
(Alexandre Foca. Camarada que a capoeira nos deu. Portugues, morador de Lisboa; capoeirista, anarquista, punk, músico, blogueiro e grande admirador e conhecedor da cultura afro-brasileira).
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