quarta-feira, 7 de dezembro de 2016




Palestra ministrada por Mestre Cláudio Danadinho, em 11/11/2000 em um Festival Nacional de Capoeira em Brasília, Teatro Conchita de Moraes, Conic.




           ARQUITETURA E CAPOEIRA

A analogia
     Parecem existir princípios que não poderiam ser comparados entre outras áreas do conhecimento, ofícios e artes.
     A Arquitetura é ensinada entre as Ciências Humanas na UNB, entre Ciências Exatas na USP e entre as Belas Artes na UFRJ. A Capoeira vem sendo praticada em centros culturais e de artes, em “academias” de lutas, ou em ambientes esportivos. Mesmo com objetivos distintos a essência preserva suas identidades. A essência diz respeito aos elementos fundamentais que as constituem.
     São de outra natureza. Por exemplo, a Odontologia, uma Ciência da Saúde, cuja racionalidade está presente nas restaurações, em materiais e elementos como pivôs, pontes, e cimentos; na funcionalidade do mastigar ou na estética das cores e formas dos dentes.
     A Arquitetura e a odontologia são dois ofícios com procedimentos práticos que se assemelham.
     Entre a Arquitetura e a Capoeira, aparentemente tão díspares, parece haver fundamentalidades análogas.
     Funcionalidade, racionalidade e estética são essências constitutivas da “síntese vitruviana” na Arquitetura e tão respectivamente equivalentes a jogo, luta e dança na Capoeira, quanto inseparáveis nas unidades conceituais que as definem. Separá-las seria como desagregar o complexo cultural sistêmico, atentando contra a identidade essencial que as distingue pelo conteúdo de suas globalidades.
     Assim, de uma instalação que se manifeste pela essência parcial, não se espera valor arquitetônico. Por exemplo: o justo atendimento a uma necessidade social exprime-se pela funcionalidade, como muitas soluções de habitação social; ou quando se destaca pela tecnologia da engenharia aplicada, demonstrando sua racionalidade em muitos galpões industriais e pontes; ou ainda quando revela beleza, surgindo como manifestação estética: as esculturas, a cenografia ou a decoração, algumas vezes revelando valor como obra de arte. Mesmo sendo realizações com atributos essenciais, não serão necessariamente reconhecidas como obras arquiteturais.
     Em campeonatos, lutando ao som do berimbau e com golpes de Capoeira, o sistema de contagem de pontos pode descaracterizar sua identidade; o mesmo acontece com as marcações coreográficas, universalizando a estética, em combinações e atitudes como na “Capoeira do amor”. Os “passos” estilizados guardam a lembrança da Capoeira. Mas mesmo o “jogo do dinheiro”, como exercício, também reduz a estratégia da Capoeira praticada integralmente.
     As conceituações, jogo, luta, dança, ou funcional, racional, estética, trindades constitutivas das duas unidades globais, coexistem essencialmente de forma simultânea, tanto na Capoeira como na Arquitetura. São os elementos da unidade essencial de cada uma e parecem exprimir a analogia fundamental que se quer aludir.
     Há na Arquitetura outra questão primordial como aquela unidade essencial, que a distingue de forma específica em relação às práticas comumente comparadas à Capoeira, notadamente as artes marciais, convertidas em competições esportivas.
     Trata-se da dualidade espaço-tempo aparentemente evidente na Arquitetura pelo “grau de permanência” das obras e pela história da construção existencial da morada humana. E isto, em dimensão e transcendência. A Capoeira vive a originalidade que a distingue embora venha pretendendo evoluir sistematizações diversas, como se estivesse completando um amadurecimento. Como se não estivesse pronta, desenvolve expectativas de tornar-se esporte olímpico, institucionalizar-se através de regulamentações federativas ou ainda tornar-se disciplina de ensino superior. Entre outras expectativas.

O Espaço

A prática da Capoeira, nas garagens, “academias”, salões, ginásios ou pilotis, podendo ser em qualquer lugar, tornou-a relativamente mais rara nas ruas, nas esquinas e nos mercados; onde antes se cultivava a mandinga e a picardia, tornou-se mais rara do que quando era proibida.
     A representação do círculo pintado no chão é uma sintetização espacial redutiva: é a supressão do povo em volta, estabelecendo a noção de distância comedida e que era também o júri, sem julgar necessariamente um vencedor e um derrotado. Era a ”parede” delimitando, com o calor da plateia popular, o espaço da vadiagem. Ou da vadiação, como era a roda de Waldemar e Traíra no Bairro da Liberdade na esquina do Mercado Agnelo, em Salvador, Bahia. Os populares torciam e configuravam o lugar que a condição contemporânea pretende evoluir.
     Pintada no chão é o simulacro de um complexo cultural. Simulacro de sua cosmogonia.
     Não havendo nenhum que seja exclusivamente o seu, o espaço da Capoeira ainda é qualquer lugar.

O Tempo

     O tempo – cadência, ritmo e duração – como conceito pelo qual a Capoeira deve ser compreendida na sua identidade, é tributário da existência factual na mídia e dos eventos decorrentes de sua comercialização: a hora-aula, o espetáculo contratado e os batizados de alunos às centenas. A massificação! Agora a Capoeira depende da circunstância em que se apresenta; a transformação é a do tempo, que antes era aberto, determinado pelos dois – jogadores, gladiadores, bailarinos – capoeiras. A estratégia era, portanto, outra, diferente dos “rounds”, das competições esportivas e de diversas práticas diferentes da Capoeira ou da própria vida, quando o tempo não é combinado de antemão. A característica fundamental consistia justamente em não haver, por princípio, tempo definido para a Volta do Mundo.

As Transcedência

     O tempo perdeu o sentido e o espaço ganhou outro.
     Mas o “grande mestre é o Mestre Tempo e a grande roda é a Roda da Vida”, nas palavras de Pombo de Ouro, mestre na simplicidade, elegância e sabedoria capoeira.
     As afinidades entre a Capoeira e a Arquitetura parecem com as evoluções espaço-temporais da civilização brasileira em formação. São manifestações simultaneamente populares e eruditas, elaborações transcendentes desta nação nova onde misturaram-se povos tão antigos.
     A aproximação destas práticas diferentes, considerando as tríades elementares de seus sistemas conceituais, parecem refletir o complexo cultural maior no qual estão envolvidos.
     Esta analogia pode remeter a outras relações que, na perspectiva simbólica, referenciam diversas existências do mesmo universo cultural, notadamente certos arquétipos como a rede, as velas das jangadas e as tradicionais baianas vestidas de branco, vivas na memória do inconsciente coletivo e presentes, por exemplo, na herança sintetizada em Brasília, como nas colunas dos seus palácios.
     Da mesma forma o clima do país com sua geografia harmoniosa, rica, monótona ou suave; as cidades extensivas em granulações concentradas ou dispersas de um urbanismo delicado, rarefeito ou altivo. Feitas de planos, de ladeiras e de curvas, em horizontes amplos ou condicionados, sempre refletindo a circunstância natural, desde a arquitetura colonial primaz. Rendida rapidamente à colonial brasileira, caracteriza-se pela generosidade do espaço e a ausência de adornos, nos termos de Buarque de Holanda em seu clássico Raízes do Brasil. Precocemente atingiu o estatuto moderno, como Arquitetura Brasileira, uma das raras áreas que superou a dependência cultural, “assentada no concerto internacional de ideias” – como relatava o Prof. Edgar Graeff (UNB) com as palavras do prof. Antônio Cândido (USP) -, marcada pelo lirismo, pela leveza dos conjuntos construídos e pela poesia dos prédios públicos. Como raras no mundo, a população festeja em cima da cobertura do Congresso Nacional sua natureza incomum: a praça sobre o palácio, representação maior do poder popular na República!
     A Capoeira pelo mundo organizada como em “franchises” da Patagônia à Finlândia é cantada e jogada em “língua brasileira”! Uma afirmação cultural através da mais genuína expressão de resistência.
     As cidades nascidas “Ex Nihilo”, onde antes existia a natureza, foram constituindo-se em gestos simbólicos, como em Brasília, “concisa e derramada” nos termos de Lucio Costa no Memorial do Plano Piloto. O “Minhocão” da UNB e as Asas de Brasília, como as redes nativas, se repetem fractais. Fractais como o triângulo do “gesto primário” de Lucio Costa, delimitando virtualmente o projeto e reaparecendo fundido em pedra, na Torre: três ângulos apoiando a estrutura de aço com três pilares principais, constituídos, cada um, em sistemas de três tubos. Trilógico!
     A Capoeira aconselhava – pelo saber popular transformado em regra rudimentar – três apoios, utilizando pernas, braços e cabeças. Faz lembrar os três apoios otimizados das colunas do Alvorada, do Planalto e do Judiciário, multiplicando as tríades. Funcionais, racionais e estéticas.
     Três apoios – facultativos na meia lua de compasso, dois obrigatórios no rabo de arraia e uma só perna na armada arriscada – descrevendo arcos românticos. Cúpulas invertidas dos trópicos, das grandes baías. Copacabanas, rasteiras traçadas na paisagem... e as velas navegantes como os “S dobrado” ao vento. Jogo, dança e luta.
     Cores fortes da Índia, o negro e o branco muito branco no meio da terra. Mediterrâneas! Galopantes de mãos soltas, palmada como aquela clara e sombria protegendo o Museu do Índio: elipses arqueadas e concordâncias retas; ações diretas em tensões duplas nas torres do Congresso: bênçãos de empurrar, ou saltadas de bater.
     Universais e contextuais. Inéditas, observam à distância sem perder o ritmo – escala e proporção -, surpreendentes como a civilização brasileira. A Capoeira e a Arquitetura.




Cláudio Queiroz
Danadinho, nome de guerra.
Foi iniciado mestre pela ausência de Mestre Arraia, ensinando a rapazes e moças no Colégio Elefante Branco e no CIEM, em Brasília, antes do “Berimbau de Ouro” 1968; participou da criação do Grupo Senzala com outros amigos – Rafael, Fernando, Gato, Itamar, Gil, Tabosa, Peixinho, Borracha, Mosquito, Garrincha, Sorriso, Jimmy, Antero, Macaco, Paulo e Gilberto Flores e Adilson.
É professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em arquitetura e urbanismo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UNB. Trabalhou com Oscar Niemayer em Argel na Argélia.