Palestra
ministrada por Mestre Cláudio Danadinho, em 11/11/2000 em um Festival Nacional de Capoeira em Brasília, Teatro Conchita
de Moraes, Conic.
ARQUITETURA
E CAPOEIRA
A analogia
Parecem existir princípios que não
poderiam ser comparados entre outras áreas do conhecimento, ofícios e artes.
A Arquitetura é ensinada entre as Ciências
Humanas na UNB, entre Ciências Exatas na USP e entre as Belas Artes na UFRJ. A
Capoeira vem sendo praticada em centros culturais e de artes, em “academias” de
lutas, ou em ambientes esportivos. Mesmo com objetivos distintos a essência
preserva suas identidades. A essência diz respeito aos elementos fundamentais
que as constituem.
São de outra natureza. Por exemplo, a
Odontologia, uma Ciência da Saúde, cuja racionalidade está presente nas
restaurações, em materiais e elementos como pivôs, pontes, e cimentos; na
funcionalidade do mastigar ou na estética das cores e formas dos dentes.
A Arquitetura e a odontologia são dois
ofícios com procedimentos práticos que se assemelham.
Entre a Arquitetura e a Capoeira,
aparentemente tão díspares, parece haver fundamentalidades análogas.
Funcionalidade, racionalidade e estética
são essências constitutivas da “síntese vitruviana” na Arquitetura e tão
respectivamente equivalentes a jogo, luta e dança na Capoeira, quanto
inseparáveis nas unidades conceituais que as definem. Separá-las seria como
desagregar o complexo cultural sistêmico, atentando contra a identidade
essencial que as distingue pelo conteúdo de suas globalidades.
Assim, de uma instalação que se manifeste
pela essência parcial, não se espera valor arquitetônico. Por exemplo: o justo
atendimento a uma necessidade social exprime-se pela funcionalidade, como
muitas soluções de habitação social; ou quando se destaca pela tecnologia da
engenharia aplicada, demonstrando sua racionalidade em muitos galpões
industriais e pontes; ou ainda quando revela beleza, surgindo como manifestação
estética: as esculturas, a cenografia ou a decoração, algumas vezes revelando
valor como obra de arte. Mesmo sendo realizações com atributos essenciais, não
serão necessariamente reconhecidas como obras arquiteturais.
Em campeonatos, lutando ao som do berimbau
e com golpes de Capoeira, o sistema de contagem de pontos pode descaracterizar
sua identidade; o mesmo acontece com as marcações coreográficas,
universalizando a estética, em combinações e atitudes como na “Capoeira do
amor”. Os “passos” estilizados guardam a lembrança da Capoeira. Mas mesmo o
“jogo do dinheiro”, como exercício, também reduz a estratégia da Capoeira
praticada integralmente.
As conceituações, jogo, luta, dança, ou
funcional, racional, estética, trindades constitutivas das duas unidades
globais, coexistem essencialmente de forma simultânea, tanto na Capoeira como
na Arquitetura. São os elementos da unidade essencial de cada uma e parecem
exprimir a analogia fundamental que se quer aludir.
Há na Arquitetura outra questão primordial
como aquela unidade essencial, que a distingue de forma específica em relação
às práticas comumente comparadas à Capoeira, notadamente as artes marciais,
convertidas em competições esportivas.
Trata-se da dualidade espaço-tempo
aparentemente evidente na Arquitetura pelo “grau de permanência” das obras e
pela história da construção existencial da morada humana. E isto, em dimensão e
transcendência. A Capoeira vive a originalidade que a distingue embora venha
pretendendo evoluir sistematizações diversas, como se estivesse completando um
amadurecimento. Como se não estivesse pronta, desenvolve expectativas de
tornar-se esporte olímpico, institucionalizar-se através de regulamentações
federativas ou ainda tornar-se disciplina de ensino superior. Entre outras
expectativas.
O Espaço
A prática da
Capoeira, nas garagens, “academias”, salões, ginásios ou pilotis, podendo ser
em qualquer lugar, tornou-a relativamente mais rara nas ruas, nas esquinas e
nos mercados; onde antes se cultivava a mandinga e a picardia, tornou-se mais
rara do que quando era proibida.
A representação do círculo pintado no chão
é uma sintetização espacial redutiva: é a supressão do povo em volta,
estabelecendo a noção de distância comedida e que era também o júri, sem julgar
necessariamente um vencedor e um derrotado. Era a ”parede” delimitando, com o
calor da plateia popular, o espaço da vadiagem. Ou da vadiação, como era a roda
de Waldemar e Traíra no Bairro da Liberdade na esquina do Mercado Agnelo, em
Salvador, Bahia. Os populares torciam e configuravam o lugar que a condição
contemporânea pretende evoluir.
Pintada no chão é o simulacro de um
complexo cultural. Simulacro de sua cosmogonia.
Não havendo nenhum que seja exclusivamente
o seu, o espaço da Capoeira ainda é qualquer lugar.
O Tempo
O tempo – cadência, ritmo e duração – como
conceito pelo qual a Capoeira deve ser compreendida na sua identidade, é
tributário da existência factual na mídia e dos eventos decorrentes de sua
comercialização: a hora-aula, o espetáculo contratado e os batizados de alunos
às centenas. A massificação! Agora a Capoeira depende da circunstância em que
se apresenta; a transformação é a do tempo, que antes era aberto, determinado
pelos dois – jogadores, gladiadores, bailarinos – capoeiras. A estratégia era,
portanto, outra, diferente dos “rounds”, das competições esportivas e de
diversas práticas diferentes da Capoeira ou da própria vida, quando o tempo não
é combinado de antemão. A característica fundamental consistia justamente em
não haver, por princípio, tempo definido para a Volta do Mundo.
As Transcedência
O tempo perdeu o sentido e o espaço ganhou outro.
Mas o “grande mestre é o Mestre Tempo e a
grande roda é a Roda da Vida”, nas palavras de Pombo de Ouro, mestre na
simplicidade, elegância e sabedoria capoeira.
As afinidades entre a Capoeira e a
Arquitetura parecem com as evoluções espaço-temporais da civilização brasileira
em formação. São manifestações simultaneamente populares e eruditas,
elaborações transcendentes desta nação nova onde misturaram-se povos tão
antigos.
A aproximação destas práticas diferentes,
considerando as tríades elementares de seus sistemas conceituais, parecem
refletir o complexo cultural maior no qual estão envolvidos.
Esta analogia pode remeter a outras
relações que, na perspectiva simbólica, referenciam diversas existências do
mesmo universo cultural, notadamente certos arquétipos como a rede, as velas
das jangadas e as tradicionais baianas vestidas de branco, vivas na memória do
inconsciente coletivo e presentes, por exemplo, na herança sintetizada em
Brasília, como nas colunas dos seus palácios.
Da mesma forma o clima do país com sua
geografia harmoniosa, rica, monótona ou suave; as cidades extensivas em
granulações concentradas ou dispersas de um urbanismo delicado, rarefeito ou
altivo. Feitas de planos, de ladeiras e de curvas, em horizontes amplos ou
condicionados, sempre refletindo a circunstância natural, desde a arquitetura
colonial primaz. Rendida rapidamente à colonial brasileira, caracteriza-se pela
generosidade do espaço e a ausência de adornos, nos termos de Buarque de
Holanda em seu clássico Raízes do Brasil. Precocemente atingiu o estatuto
moderno, como Arquitetura Brasileira, uma das raras áreas que superou a
dependência cultural, “assentada no concerto internacional de ideias” – como
relatava o Prof. Edgar Graeff (UNB) com as palavras do prof. Antônio Cândido
(USP) -, marcada pelo lirismo, pela leveza dos conjuntos construídos e pela
poesia dos prédios públicos. Como raras no mundo, a população festeja em cima
da cobertura do Congresso Nacional sua natureza incomum: a praça sobre o
palácio, representação maior do poder popular na República!
A Capoeira pelo mundo organizada como em
“franchises” da Patagônia à Finlândia é cantada e jogada em “língua
brasileira”! Uma afirmação cultural através da mais genuína expressão de resistência.
As cidades nascidas “Ex Nihilo”, onde
antes existia a natureza, foram constituindo-se em gestos simbólicos, como em
Brasília, “concisa e derramada” nos termos de Lucio Costa no Memorial do Plano
Piloto. O “Minhocão” da UNB e as Asas de Brasília, como as redes nativas, se
repetem fractais. Fractais como o triângulo do “gesto primário” de Lucio Costa,
delimitando virtualmente o projeto e reaparecendo fundido em pedra, na Torre:
três ângulos apoiando a estrutura de aço com três pilares principais,
constituídos, cada um, em sistemas de três tubos. Trilógico!
A Capoeira aconselhava – pelo saber
popular transformado em regra rudimentar – três apoios, utilizando pernas,
braços e cabeças. Faz lembrar os três apoios otimizados das colunas do Alvorada,
do Planalto e do Judiciário, multiplicando as tríades. Funcionais, racionais e
estéticas.
Três apoios – facultativos na meia lua de
compasso, dois obrigatórios no rabo de arraia e uma só perna na armada
arriscada – descrevendo arcos românticos. Cúpulas invertidas dos trópicos, das
grandes baías. Copacabanas, rasteiras traçadas na paisagem... e as velas
navegantes como os “S dobrado” ao vento. Jogo, dança e luta.
Cores fortes da Índia, o negro e o branco
muito branco no meio da terra. Mediterrâneas! Galopantes de mãos soltas,
palmada como aquela clara e sombria protegendo o Museu do Índio: elipses
arqueadas e concordâncias retas; ações diretas em tensões duplas nas torres do
Congresso: bênçãos de empurrar, ou saltadas de bater.
Universais e contextuais. Inéditas,
observam à distância sem perder o ritmo – escala e proporção -, surpreendentes
como a civilização brasileira. A Capoeira e a Arquitetura.
Cláudio
Queiroz
Danadinho,
nome de guerra.
Foi
iniciado mestre pela ausência de Mestre Arraia, ensinando a rapazes e moças no
Colégio Elefante Branco e no CIEM, em Brasília, antes do “Berimbau de Ouro”
1968; participou da criação do Grupo Senzala com outros amigos – Rafael,
Fernando, Gato, Itamar, Gil, Tabosa, Peixinho, Borracha, Mosquito, Garrincha,
Sorriso, Jimmy, Antero, Macaco, Paulo e Gilberto Flores e Adilson.
É
professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em arquitetura
e urbanismo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UNB. Trabalhou com
Oscar Niemayer em Argel na Argélia.
Muito bom!!
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